A Morte Voluntária

André Mattos

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e setas com que a fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer, dormir: não mais. Dizer que rematamos com um sono a angústia e as mil pelejas naturais – herança do homem: Morrer para dormir… é uma consumação. Que bem merece e desejamos com fervor. Dormir… Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo.”

Nesta tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos de um trecho conhecido de A tragédia de Hamlet, que encontramos na página inicial do livro História do Suicídio – a sociedade ocidental diante da morte voluntária de Georges Minois, somos apresentados a dúvida entre conviver com “um mar de provocações… e as mil pelejas naturais”, presentes na existência humana e a possibilidade de “morrer para dormir” (visão do autor sobre o pós-morte). O “ser ou não ser, eis a questão” é indagação empregada socialmente em questionamentos bem diferentes da proposta original de Shakespeare.

Dialogar sobre a Morte Voluntária é tratar de um problema que afeta a sociedade humana a milênios e vem servido de tema artístico para vários pintores.

Imagem 1: A Morte de Charteton, obra de Henry Halles de 1856, retrata a figura de Chatterton poeta e jornalista inglês, nascido em 1752, conhecido por suas poesias no estilo medieval, que escrevia com pseudónimo Thomas Rowley. Num determinado momento de sua vida teve suas composições medievais rejeitadas para publicação. Sem meios para se sustentar nem esperança para um futuro melhor, acabou por se envenenar com arsênico pouco antes de completar 18 anos.

Jean Baechler, sociólogo francês, citado por Georges Minois escreveu que não há nada mais real em nossas vidas do que a morte, e diante desta realidade indagou: “O que existe de mais especificamente humano do que a morte voluntária? Só o homem é capaz de refletir sobre sua própria existência e tomar a decisão de prolonga-la ou por fim a ela.” Inteligência para refletir e livre-arbítrio para realizar sua escolha, decisão, que quando da morte voluntária, supera o próprio instinto de sobrevivência.

Minóis diante da questão apresentada por Shakespeare e de uma pequena relação daqueles que optaram por causas diversas pela morte voluntária (Catão, Sêneca, Monthrlant, Bettelheim), afirma que “cada um tinha suas razões, e é importante compreendê-las, pois essa atitude revela os valores fundamentais da sociedade.” Está é uma observação que considero fundamental.

A morte de si mesmo traz consigo olhares divergentes nos campos variados do conhecimento humano, indo de conceitos que a interpretam como um gesto de covardia (quando principalmente relacionadas as categorias sociais mais pobres “incapazes” de enfrentar a miséria, a doença e o medo), passando pelo direito a escolha sobre própria morte, até os que se matam para fugir as humilhações de uma derrota num conflito ou evitar um estrupo, o gesto heroico “fiel à honra cavalheiresca ou uma demonstração de fé inquebrantável até no martírio”

Imagem 2: Lucrécia arquétipo da morte voluntária que se segue a um estrupo. Esposa de Colatino, estrupada por Tarquínio, conforme narra Tito Lívio. Retratada por Joos Van Cleve neste óleo sobre tela de 1520, intitulada O Suicídio de Lucrétia, atualmente no Kunsthistorisches Museum em Viena, Áustria.

A relação humana diante da morte voluntária sempre foi pautada pelo extrato social: de abandono, antecipação social e religiosa do julgamento com penalidades definidas; durante muito tempo considerado um crime, o que estabeleceu como melhor fonte histórica para pesquisa os arquivos judiciais; miséria, doença, sofrimentos físicos e psicológicos, medo da punição, tentação diabólica e covardia, quando praticado pelo camponês e o artesão. Neste caso, morte voluntária por egoísmo.

Quando o suicídio se apresenta como uma opção de morte que está vinculada as questões humanas no âmbito da religião, da moral e da cultura social, “o cavaleiro e o clérigo se matam para escapar da humilhação e privar o infiel de seu triunfo.” Morte voluntária por motivos altruístas. São os guerreiros que optam pelo suicídio para fugir a desonra de serem presos ou mortos pelos seus inimigos; as mulheres dos nobres derrotados que fogem a vilipendiação e a desgraça, o “suicídio por amor” com a decepção pela rejeição da dama amada. O mesmo entendimento para o representante da Igreja que busca a morte voluntária – um martírio em nome da fé.

Temos então na Idade Média “o suicídio nobre do suicídio desprezível. Mais que o gesto, é a personalidade e a motivação do suicida que importam.” São duas faces de uma mesma moeda, a origem social do suicida define o silêncio, a dissimulação, o disfarce, a aceitação e a condenação.

Imagem 3: Obra Suicídio – Edouard Manet (1880), pintura a óleo que se tornou célebre por retratar o tema de forma realista.

A morte voluntária ato praticado por todas as categorias sociais e por ambos os sexos (pesquisas apontam maior incidência entre os homens na atualidade), premeditado, mais do que nunca, se tornou uma realidade incômoda, assustadora, que gera mal-entendidos, preconceitos, silêncio e abandono, visto como pecado que conduz invariavelmente ao inferno, sem direito a orações e preces, para aquele que desiste da vida.

É preciso reconhecer que “cada um tinha suas razões, e é importante compreendê-las, pois essa atitude revela os valores fundamentais da sociedade.” Nossos valores. Diante da Morte Voluntária a vida apresenta-se para todos nós no padrão ilógico e instransponível das imposições de uma visão pouco afeita a pensar e considerar os problemas existenciais de uma vida pautada pelas ilusões de felicidade presentes “em um pote de margarida” que aberto apenas oferece um produto ofensivo a saúde.

Imagem 4: A Lamentação para Icaro é uma pintura por Herbert James Draper de 1898, apresentando Icaro morto, cercado por ninfas. “Dr. Justine Hopkins, Draper identifica Icaro “com os outros heróis da pré-rafaelitas e simbolistas, que, como James Dean, meio século depois, conseguem viver rápido, morra jovem e deixe um cadáver bonito”; consequência de dramas pessoais desconhecidos e não revelados.

Dramas pessoais são “apagados” ou deslocados, os heróis são apresentados nas grandes telas e quando optam pela morte voluntária – veja o gesto da Viúva Negra se “sacrificando” pela possibilidade de salvação da humanidade terrena, não são suicidas, mas heróis… esquecemos que muitos dos nossos “heróis” morreram de overdose… não eram heróis, mas seres humanos.

A morte voluntária é uma escolha difícil, fruto de uma condição psíquico-social, não um pecado que decorre da influência de um ser naturalmente voltado para o mal; não há conceito de post-mortem como os apresentados pelas tradicionais filosofias religiosas que imponha uma barreira a uma recusa a vida, porque o que deveria contar para o impedimento deste gesto, é uma existência com valores mais de acordo com a dignidade humana.

REFERÊNCIA

Minois, GEORGES. História do Suicídio. A sociedade ocidental diante da morte voluntária. Editora UNESP, São Paulo/SP. 2018

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