A cidade como um texto possível de ser lido… educação e cultura urbana.

Profº André Mattos e Profª Bianca Azevedo Silvério

O campo gravitacional ao qual pertence à expressão cultura urbana (…) reúne palavras que se atraem multuamente: processo, linguagem, subjetividade, experiência. São termos diferentes entre si, mas que deixam – especialmente se pensadas em face do conjunto cultura e educação – perceber um destino compartilhado: a perspectiva de ampliação ou universalização dos direitos e o aprofundamento democrático. (Salles, 2014)

Incluir a cultura numa perspectiva de expressões de linguagens e símbolos possíveis de leitura e interpretação contendo significados sócio-históricos, permite fomentar construções discursivas relacionando a arte, a fotografia e a literatura, entre as atuações sociais e as estruturas do sentir e educar, como manifestações da vida urbana.

Rios (2014) reafirma o quanto é importante à cultura na vida social e o quanto esta e a educação relacionam-se nas expressões diárias de cada cidadão habitante ou peregrino de uma cidade, sejam através das manifestações mais simples como os esportes, as brincadeiras, as histórias, sejam nas ações mais complexas, demonstrando que a relação entre o ambiente da escola e a vida da cidade são mais permeáveis e educadoras do que estamos (nós professores) habituados a identificar.

E esta relação cidade, educação e cultura circunscreve-se na realidade contemporânea porque apesar dos limites educacionais impostos ao ambiente escolar durante séculos – como único lugar para as ações pedagógicas, não podemos desconsiderar que a escola da cidade é um espaço institucional inserido no espaço geográfico e na vida urbana e os seus alunos são sujeitos da urbe.

Miranda e Blanch em artigo publicado no livro Cidade, Memória e Educação citam Florentino Saenz Fernandes para afirmar que este autor nos chama atenção…

para o fato de que, se tradicionalmente a escola se projeta como um espaço interno e positivado de aprendizagem de conteúdos sistêmicos e ordenados, a aprendizagem maior dos sujeitos naquilo que lhes confere significados ancorados em suas vivências se constitui fora do território escolar. (Miranda e Blanch, 2013)

Na atualidade uma série de manifestações culturais, artísticas e literárias, algumas como fruto de pesquisas interdisciplinares, contribuem para a construção de pensamentos teóricos e ações pedagógicas que afirmam a dimensão educadora da experiência urbana, avançando nas reflexões sobre uma sociedade democrática, multifacetária, multicultural e polifônica, por meio da redefinição de paradigmas constituídos desde o século XVII, que limitam o local da vivência educadora no espaço da escola. Alguns exemplos contribuem para esta percepção, como a arte do Mundano, grafiteiro e ativista; sua arte é interpretada em três dimensões urbanas: pública, social e educativa.

Imagem 1: Mundano e o Grafite Papo reto de Vitória Loise. Disponível em https://blog.artsoul.com.br/a-cidade-fala-mundano-e-o-grafite-papo-reto/. Acesso em jul 2022.
Imagem 2: Mundano e o Grafite Papo reto de Vitória Loise. Disponível em https://blog.artsoul.com.br/a-cidade-fala-mundano-e-o-grafite-papo-reto/. Acesso em jul 2022.

A esfera pública é o posicionamento do artista frente ao acesso à arte e ao pensamento crítico (…). A esfera social expande os limites da arte e vai até a mobilização social para impulsionar uma causa. A esfera educativa está organizada dentro do guarda-chuva do Pimp My Carroça em uma ramificação chamada PIMPEX que envolve projetos escolares para revitalizar os equipamentos de trabalho de um determinado catador. Essa vertente amplia o debate sobre o sistema de coleta de materiais recicláveis dentro da escola ou da organização que encabeça cada projeto e coloca em destaque o trabalho do catador que, mesmo marginalizado, é elementar neste sistema. (Louise, 2020)

Neste contexto, a arte de Mundano oferece uma possibilidade de leitura dos espaços de relações e de uma educação pela urbe.

Paulo Freire é quem melhor conduz a nós educadores a entender e desenvolver pesquisas que possibilitem reflexões quanto à dimensão educadora da experiência urbana. Ele, conforme afirmam Miranda e Blanch (2013)…

nos convida a pensar no fato de que a cidade é educativa em um sentido latu senso [destaque do autor] e que as ações sociais desenvolvidas pelos diversos atores sociais no espaço da cidade são tão ou mais educadoras que aquelas ocorridas nos espaços estritamente escolares.

Imagem 3: Mundano e o Grafite Papo reto de Vitória Loise. Disponível em https://blog.artsoul.com.br/a-cidade-fala-mundano-e-o-grafite-papo-reto/. Acesso em jul 2022.

Artes e fotografias permitem práticas educativas que se realizam em nossa sociedade, organizadas na relação da vida cotidiana e que objetivam promover o aprimoramento de sensibilidades e a implicação reflexiva dos jovens com os territórios urbanos, proporcionando ensejos para que conheçam e explorem espaços onde estão reunidas práticas juvenis, artísticas, tecnológicas, relativas ao mundo do trabalho, das políticas, das ciências, de promoção da saúde, de lazer e de esportes.

A cultura pensada como processo atua no cotidiano das pessoas, modificando-as produtivamente, potencializando os sujeitos das ações, incidindo sobre a comunidade: reforça laços, estimula a conquista de autoestima, produz pensamento sobre o lugar de cada um na rua, no bairro, na cidade, no país, no mundo, abrindo-se à possibilidade de transformar e de democratizar esse processo. (Salles, 2013)

A educação na e pela cidade se desenvolve nas descobertas, experiências, sentidos, transformação e compreensão do que foi “impregnado” no decorrer do tempo histórico de sua formação, delimitando a memória cultural da sociedade que se estabelece em seus encostes. É a ação pedagógica que se estende para os limites externos dos muros das escolas e que tem na cultura urbana e na sua memória – a cidade como espaço de vivências de uma sociedade policultural, e que se desenvolve através de ações rememorativas; os elementos que permitem forjar nossos sentidos de pertencimento e identidade.

São os arte-educadores, como a fotógrafa Melina Resende, que atuam para proporcionar aos jovens (além muros escolares) experiências sobre educação, juventude e vivências urbanas, sociais e culturais. Melina realiza oficina Foto&Grafia – Fotografia e Educação, projeto multidisciplinar que busca desenvolver o registro de territórios urbanos através da fotografia, arte urbana, áudio, vídeo e texto, tornando possível uma leitura da cidade e das suas diversas relações, permitindo não apenas a identificação das “zonas de contato”, mas e principalmente, a diversidade das culturas urbanas inseridas nestes espaços.

Imagem 4: Arte-educadora Melina Resende. Para conhecer melhor o seu trabalho, acesse: https://www.facebook.com/Foto8grafia/;
https://www.facebook.com/melina.resende; https://www.flickr.com/people/melinaresende/

Entre diversos conceitos que procuram vencer a complexidade do termo cultura, temos o que “designa a capacidade de determinados grupos em desenvolver o seu trabalho com organicidade e legitimidade nas comunidades onde se estabeleceram,” (Salles, 2014) conferindo a cultura e a memória cultural o potencial criativo de transformar os espaços de sua manifestação.

Nos anos contemporâneos o campo da cultura e suas diversas manifestações vem exercendo um papel de crescente importância na vida social, econômica e política, proporcionando ao sujeito histórico e social o direito também de escolha da cultura a ser experimentada, mais uma vez entendida como um modo de estar na vida, permitindo uma profunda e sólida inclusão em múltiplos territórios de atuação.

Imagem 5: Melina Resende – Contradições sobre liberdade, a natureza e a arte – Festival Praça da Nascente – Página do Coletivo Ocupe & Abrace para promover ações de revitalização cultural e ambiental na Praça da Nascente (e no Bairro Pompeia), São Paulo/SP.
Imagem 6 e 7: Foto&Grafia – Fotografia e Educação – atividade com jovens da oficina – saída pedagógica – Parque Agua Branca – São Paulo/SP – abril 2022

A concentração populacional no entorno das grandes e médias cidades, em espaços designados por termos como periferia e favela, delimitados não somente pelas regras institucionais do Estado e da sociedade e pelos limites “entre a dinâmica de expansão/crise da economia capitalista” (Miranda e Blanch. 2013, p 17) vem criando no decorrer do tempo histórico, “as múltiplas formas de vida e trabalho engendradas por condições e práticas sociais [capitalistas] e não capitalistas”. (Ibdem)

A arte educação nas suas diversas expressões suaviza a realidade da imagem da cidade envolta na pressa dos movimentos de seus habitantes, nas suas formas de cimento e aço e nos sentimentos (maus sentimentos – tédio, nojo e ódio) presente em seus citadinos.  “Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade de investimento, a partir do campo cultural, em outra vida possível, afetando e associando-se ao movimento da vida social, numa recusa decidida de acomodar-se à ordem dominante.” (Salles, 2014)

Educar na cidade e com a cidade, portanto, não diz respeito apenas as ações que possam ser produzidas estritamente no âmbito de uma Secretária de Educação, ou de uma escola, mas impacta também ações multissetoriais.  A formação pedagógica deveria abarcar reflexões onde a educação através das experiências culturais e da memória cultural urbana sublinhassem as dimensões subjetivas que invadem o viver em cidades.

Referências:

LOUISE, Vitória. Mundano e o Grafite Papo Reto. Disponível em https://blog.artsoul.com.br/a-cidade-fala-mundano-e-o-grafite-papo-reto/. Acesso jul 2022.

MIRANDA e BLANCH, Sonia Regina e Joan Pagès. Cidade, Memória e Educação: conceitos para provocar sentidos no vivido in Cidade, Memória e Educação. Editora UFJF. Juiz de Fora/MG, 2013.

RÍOS, Alicia. Los estudios culturales y el estúdio de la cultura em América Latina. Disponível no site:http://perio.unlp.edu.ar/teorias2/textos/m4/rios.pdf. Acesso em: 30 de nov. de 2014.

SIMAN, Lara Mara de Castro. Cidade: um texto a ser lido, experienciado e recriado, entre flores e ervas daninhas in Cidade, Memória e Educação. Editora UFJF. Juiz de Fora/MG, 2013.

SALLES, Ecio. Salto para o Futuro, apresentação da série Cultura Urbana e Educação. Disponível no site: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000012189.pdf&gt;. Acesso em 12 de dez. de 2014.

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