Envelhecimento e morte fazem parte das preocupações da raça humana, gerontologia e tanatologia foram desenvolvidas ao longo de milênios, são interdisciplinares e, no entanto, a morte, “única coisa certa desta vida” por muito que seja cotidiana, tem como contexto histórico a negação; é a representação do fracasso e da cessação dos projetos de vida. Dela temos medo, e mais ainda de seus antecedentes: doenças e fragilidades.
Por isso temos visto nossas divindades simultaneamente como piedosas e destrutivas, nos dando alegrias e ao mesmo tempo sofrimento. Nossa forma de relacionamento com elas é associada à concepção monárquica do mundo, Deus é Pai e Rei; Maria é Mãe e Rainha no catolicismo, e quase todas as religiões têm como modelo esta visão da realeza para aqueles que cuidam de nós – ou nos castigam.
Um bom exemplo foi observado na cultura africana, logo de sua invasão pelos portugueses: de costumes bárbaros e absurdas leis repressivas sem liberdade pessoal, seus reis envolviam súditos num sem-número de preceitos e imposições, e mesmo no que seriam suas casas não havia prerrogativas sobre os seus, porque chefes poderiam retirar casa, mulher e filhos. Reis exigiam o melhor produto do trabalho, o que autorizou o homem branco a concluir que esta seria a terra da escravidão, de dramáticos e cruéis custos humanos, com os resultados que conhecemos.
A separação entre Igreja e Estado aconteceu do ponto de vista histórico, entretanto monarquias permanecem ainda vivas como valor sustentando uma verdade sagrada, e muitas nações convivem até hoje com dinastias reais, por mais decorativas que sejam. O modelo patriarcal e monárquico promete uma justiça pessoal e mesmo social que não encontramos no dia a dia, quase todos os Livros Sagrados são coleções de histórias de reis e clãs; e assim, cada um deles funciona como coletâneas de contos edificantes, conceitos, preceitos de comportamentos que norteiam nossas ações e pensamentos.

Mas a morte representa uma espécie de castigo, e para falar dela utilizamos muitos truques de linguagem, recursos como metáforas e metonímias para a transformar noções concretas em abstratas: metáforas permitem novos modos de ver, mudam linhas de argumentação, são flexíveis e eficientes para tornar algumas ideias mais palatáveis; metonímias estreitam as opções que seriam amplas demais, ao tomar a parte pelo todo, por exemplo, convertendo ideias em objetos concretos, como “vestir um terno de madeira”, ou “passar desta para melhor”.
A dolorosa, mais até que outras questões envolvendo nossa vida social, pobreza, amores, separações, reciprocidade, autoridade, lealdade, que são potencialmente capazes de nos fazer sofrer, é a que mais intensamente nos leva às negociações com as divindades, pois dela não compreendemos quase nada, portanto não podemos explicar coisa alguma. Tais transações envolvem de forma geral pedidos de proteção, trocados por sacrifícios e renúncias a que nos submeteremos para alcançar a graça necessária.
Assim, em muitas igrejas pentecostais, além do dízimo ser obrigatório, na maior parte das vezes os crentes são estimulados a se aproximar do altar e contribuir ainda mais para a “Obra de Deus” também através da doação de ofertas, pois segundo seus dirigentes, pela mensagem viva e poderosa do Evangelho, ao realizar estes oferecimentos os fiéis firmam um “compromisso com Deus” e têm, portanto, o direito de se sentirem “sócios de Deus”. Quando fazemos isso, Ele fica “na obrigação (porque prometeu) de cumprir a Sua Palavra, repreendendo os espíritos devoradores que desgraçam a vida do ser humano e atuam nas doenças, acidentes, vícios, degradação social e em todos os setores da atividade humana que fazem sofrer”, dizem.
Estas fórmulas pastorais, incessantemente repetidas desde algumas décadas, são sublinhadas nos cultos e fundamentam a recomendação de que os presentes, tendo provado sua fidelidade a Deus, exijam prova de Sua grandeza e “determinem” seu desejo de prosperar não como quem pede ou suplica, mas como quem reivindica um direito; o que nos pertence (nossa vida, nossa força, nosso dinheiro) passa a pertencer a Deus; o que é d’Ele (as bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria e tudo de bom) passa a nos pertencer. Passamos a ser participantes de tudo o que é de Deus.
Tal negociação, direta e sem máscaras, ratifica direitos e deveres, é um fenômeno social, presente onde seres humanos convivem com agressões de várias ordens, opressão, dominação, abuso de poder. A violência física, visível ou privada, a violência cultural que decorre de hábitos e costumes sexuais ou psicológicos, a insegurança alimentar de país subdesenvolvido, aumentam o medo da morte e, portanto, a intensidade das negociações para “aplacar a ira da divindade”.
Tipicamente, um processo de negociação é composto por documentos que registram solicitações, orações ou registo público do pedido; ações e decisões relacionadas ao documento que lhe deu origem, dízimos do solicitante e obrigação do solicitado; tendo sua instrução normatizada em legislação geral e específica, normas do pastor como representante legal. Do ponto de vista administrativo, uma das finalidades desse processo é permitir controle e responsabilização das partes, frequentemente mencionado nos estudos sobre burocracias. Outra de suas finalidades é fornecer informações adequadas para a tomada de decisão das autoridades envolvidas, normalmente materializadas num despacho.
A própria manutenção da legitimidade negocial depende dessa crença de que estes são artefatos de registros neutros e armazenam informações, formando “espaços de sentido” no interior dos quais o crente vai colocar e (re)definir seus problemas, e aguardar as soluções que virão. De forma geral, entretanto, não se negocia com o divino para resolver um problema, e sim para construir uma nova representação dele, na qual a fé depositada e, principalmente, a manutenção das ofertas aos representantes terrenos da divindade deve ser preservada a todo custo.
Muitas vezes falta um processo educacional mais completo e aprofundado aos participantes desse processo, uma visão cultural mais abrangente que permitisse distinguir fé de negociações, proporcionando vida espiritual e noção de cidadania mais satisfatória.
Wanda Camargo – educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil.

Texto muito reflexivo, ótima leitura… adorei, parabéns!
CurtirCurtir